quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Resenha da CAPA de "Reino das Névoas", por Alliah

Não, você não leu errado. É uma resenha da capa. Ideia original da Alliah, artista plástica e escritora, que inaugurou seu blogue, Resenhando Capas, com uma resenha da capa de Reino das Névoas. E deixou esta sua quase-colega de profissão muito honrada e grata. Confiram!

A primeira resenha do blog vai pra capa do livro de contos da Camila Fernandes, “Reino das Névoas”, lançado esse ano pela Tarja.
Escolhi essa obra para inaugurar o Resenhando Capas por dois motivos. Primeiro porque eu amei o livro, tanto os contos, quanto as ilustrações. E segundo porque a análise dessa capa vai ser um tanto quanto didática, o que vai servir como uma boa introdução pra quem caiu de pára-quedas nessa exposição virtual.
Três elementos me chamaram a atenção nessa capa. E são eles as cores predominantes na arte. Amarelo/dourado, vermelho e azul. E o que essa tríade grita aos meus olhos é “Realeza!”. Nada mais adequado para um livro de contos de fada! A percepção das cores, apesar de baseada em sólidas teorias, é bastante subjetiva. Mas aqui a questão é histórica mesmo. Vamos por partes.
Primeiro o amarelo/dourado. Sempre que me deparo com tons dourados numa capa de livro, um alerta acende na minha cabeça. Eu já começo achando que vai dar errado, e na maioria das vezes dá realmente muito errado. Mas aqui funcionou, e bem. Por que o alerta e o que a Mila fez aqui que muito (wannabe) capista não faz? Ela soube dosar o tom e mimetizar o brilho. Como estamos tratando de cor pigmento, o dourado simplesmente não existe. Ele é alcançado com artifícios. A cor natural do metal ouro, que é amarelo e varia bastante, nos é característica devido ao brilho que a superfície metálica reflete. Como se aproximar disso num suporte de papel com pigmento? Sabendo usar técnicas de iluminação. Que, por sinal, foram as responsáveis por deixar a capa, em sua totalidade, tão atraente. O título amarelo tem um ótimo destaque do restante da capa. Muitas artes falham nesse aspecto, deixando as
Lápis-lazúli polido.
bordas das letras se fundirem ao fundo ou escolhendo mal os tons das cores que se contrapõem. O amarelo/dourado escurecido que aparece nas laterais e emoldura a ilustração possui uma textura (que eu acredito que tenha sido feita com base na pena de pavão, mas me corrija se eu estiver errada, Mila) que me lembrou o Egito. Não, não tem Egito nenhum no livro. Talvez as linhas circulares, oculares… Olho de pavão. Olho de Hórus. Pode ser viagem minha. Mas é provável que essa sensação se explique pelo contraste com o azul. Vamos a ele. 
A borboleta azul é meu elemento preferido de toda a capa. É, pois é, esse pequeno detalhe. Não porque é o único elemento azul. Porque não é. Tem azul no fundo.
Máscara mortuária de Tutankhamon. Quilos de ouro e lápis-lazúli.
 
Tem azul na lâmina da adaga. Mas o azul forte e intenso da borboleta me lembrou do lápis-lazúli. (Aliás, no conto que dá nome ao livro a borboleta é descrita como possuindo uma coloração lápis-lazúli). O lápis-lazúli é uma pedra que foi largamente usada em joalherias e amuletos no Egito Antigo. E é dela que vem o pigmento azul ultramarino.
O pigmento era o preferido de muitos artistas europeus dos séculos XIV, XV, XVI e XVII e era caríssimo. Tanto que era reservado para ser usado apenas em partes importantes de uma pintura. (Eu entendo bem esse tipo de frescurite com material. Alguns dias atrás eu precisava terminar um trabalho e tava quase vendendo a alma por um pastel seco amarelo cádmio. E olha que nem é caro. Mas depois da necessidade, juro que se alguém saísse gastando o material indiscriminadamente eu ia até chorar de desgosto). Bem, depois dessa época sofrida veio a indústria química, criou o ultramarino sintético com um tom mais vívido, e resolveu o problema.
Ultramarino sintético.
Ultramarino natural.
Esse azul da borboleta é bastante ultramarino sintético. Lindíssimo, não?
O vermelho fechado da capa que cobre a cabeça e os ombros da personagem é puxado pro carmim, a cor dos rubis. Esse capuz é bastante delicado e funciona tanto para o rosto da personagem quanto para a roupa, muito bem colorida e sombreada.
Ouro, lápis-lazúli e rubi. Quer mais realeza que isso? ;)
O fundo azul-acinzentado é um foco de luz que ilumina o que poderia ser uma textura de parede ou vários troncos de árvores. Ou o que mais você enxergar. A beleza do abstrato é como sua mente o percebe. Mas a chave do fundo é que ele destaca a personagem em primeiro plano. As proporções do corpo são bastante femininas, suaves e equilibradas. O jogo de sombras afinando a cintura e destacando os seios e o rosto deu profundidade à expressão na face da mulher. O contraponto dos gestos, de um lado braço relaxado e mão tensionada, do outro, braço tensionado e mão relaxada terminou de equilibrar o conjunto da capa. Esse tipo de equilíbrio gestual é típico da escultura, onde o peso da matéria-prima obriga o artista a criar uma pose obedecendo a seu centro de gravidade. (Ou compensando-o com adicionais. Sabe aquelas esculturas que tem um bloco de pedra perto dos pés da figura? Equilíbrio. Ou quando a figura está segurando uma lança ou qualquer objeto semelhante? Equilíbrio). As mesmas técnicas podem ser aplicadas para se fazer um bom desenho de figura humana. E em se tratando de equilíbrio, estamos falando também de design, o fator crucial para fazer com que uma capa de livro seja agradável aos nossos olhos.
Finalizando, posso acrescentar que a arte possui um último e importante detalhe que eu já vi muita gente errando a mão. Nitidez, gente, nitidez! É disso que uma arte digital precisa pra não parecer um borrão mal photoshopado.
Mila, parabéns pela arte!
E então, delicinhas, o que acharam? Mais teoria? Menos teoria? Gritem aí nos comentários!







Eu A-DO-REI. OK, sou suspeita. Ou pelo menos o meu lado narcisista o é. Mas o fato é que todos os meus lados adoraram. ^ ^

Não conheço nenhum blog que resenhe capas. Este aqui promete ser uma sensação, ainda mais com os  conhecimentos de arte da Alliah!

Uma digressão sobre a arte egípcia: escavações arqueológicas já gastas pelo tempo enfluenciaram o visual dos filmes, que por sua vez influenciou a visão geral de que o Egito seria uma coisa cheia de construções cor de areia, grandiosas, sim, mas em tons de bege e amarelo, no máximo um douradinho, quase camufladas no deserto. Mas os egípcios gostavam mesmo é de cor! Os que podiam pagar por isso usavam maquiagem e tinham casas com interiores decorados em cores vivas, com paredes e colunas cheias de desenhos figurativos e estilizados. Como você muito bem apontou, usavam pigmentos de diversas origens, incluindo o lápis-lazuli. Pigmentos eram feitos de forma artesanal e, portanto, eram caros. Ter objetos de arte e trajes coloridos era sinônimo de alto poder aquisitivo, portanto, coisa da realeza mesmo! XD

Agora uma digressãozinha sobre minha própria ilustração: raramente uso teorias artísticas para criar meus trabalhos, e também não as usei nesse. Muito embora eu saiba que deveria usá-las, sim. Talvez por não ter muito embasamento acadêmico e ser muito autodidata, na hora de criar eu acabo seguindo meu "feeling", confiando no meu olho. O que não significa que eu despreze as noções acadêmicas, nem que não estude tudo o que posso para fazer melhor o meu trabalho. :-)

Quanto às bordas douradas, realmente lembram as penas de pavão, mas acho que é por causa das pinceladas circulares. Essas faixas foram extraídas da fotografia de uma tela pintada displicentemente com tinta de ouro. Daí o efeito realista. ;-)

Eu tenho cá meus próprios segredos sobre a execução dessa capa, alguns deles cômicos... mas ainda não sei se convém revelá-los.

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